{"id":5183,"date":"2023-08-23T14:00:00","date_gmt":"2023-08-23T17:00:00","guid":{"rendered":"https:\/\/abto.suryamkt.com.br\/?page_id=5183"},"modified":"2023-08-23T16:22:36","modified_gmt":"2023-08-23T19:22:36","slug":"etica","status":"publish","type":"page","link":"https:\/\/site.abto.org.br\/en\/etica\/","title":{"rendered":"Ethics"},"content":{"rendered":"

Bases filos\u00f3ficas da \u00e9tica em transplantes<\/strong>
(Confer\u00eancia proferida pelo Prof. Dr. Silvano Raia, no Congresso Brasileiro de Transplantes, em Fortaleza, 2003.)<\/strong><\/p>\n\n\n\n

O n\u00famero de candidatos a transplantes inscritos em lista de espera cresce continuamente. Apenas no Brasil existem cerca de trinta mil inscritos para transplante de rim e cerca de cinco mil para f\u00edgado. No ano passado foram realizados apenas 2.990 transplantes de rim e 658 de f\u00edgado. A demanda reprimida decorrente exerce press\u00f5es de todo tipo, que resultam em t\u00e9cnicas e iniciativas destinadas a aumentar o suprimento de enxertos, seja de doador cad\u00e1ver seja de doador vivo. Os novos m\u00e9todos e as novas iniciativas sempre se baseiam em condutas mais liberais em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s normas e princ\u00edpios restritivos preexistentes.<\/p>\n\n\n\n

Define-se assim uma fun\u00e7\u00e3o in\u00e9dita para a comunidade transplantadora, qual seja, a de compatibilizar quatro p\u00f3los quase sempre divergentes entre si: os princ\u00edpios da \u00e9tica m\u00e9dica, os novos m\u00e9todos e as novas iniciativas adotadas por alguns centros mais ousados, os interesses dos candidatos a doador e receptor e a opini\u00e3o da sociedade em geral, da qual dependem todas as doa\u00e7\u00f5es.<\/p>\n\n\n\n

O que se pretende \u00e9 fornecer elementos para um posicionamento adequado frente a essas vertentes, na medida em que se transformam, considerando que na hist\u00f3ria do comportamento humano, grandes descobertas sempre coincidiram com modifica\u00e7\u00f5es de costumes e aboli\u00e7\u00e3o de normas impeditivas, exigindo revis\u00e3o dos princ\u00edpios que as disciplinavam. Sen\u00e3o mais, essas modifica\u00e7\u00f5es mostram que n\u00e3o existem princ\u00edpios e regras de comportamento dogm\u00e1ticos ou imut\u00e1veis mas que, pelo contr\u00e1rio, podem evoluir para posi\u00e7\u00f5es at\u00e9 ent\u00e3o sequer admiss\u00edveis.<\/p>\n\n\n\n

Recentemente, o advento do transplante de \u00f3rg\u00e3os e a possibilidade do manuseio dos genes pela engenharia gen\u00e9tica determinaram uma nova interpreta\u00e7\u00e3o de v\u00e1rios princ\u00edpios no \u00e2mbito da \u00e9tica, bem como a promulga\u00e7\u00e3o de novas leis no \u00e2mbito jur\u00eddico.<\/p>\n\n\n\n

Vejamos, por exemplo, o que ocorreu com o transplante intervivos de f\u00edgado descrito por n\u00f3s em 1988 para uso pedi\u00e1trico. Emprega como enxerto parte do lobo esquerdo do f\u00edgado de um doador vivo, com risco de mortalidade ao redor de 0,2 a 0,3%. Autorizado pela Comiss\u00e3o \u00c9tica de nossa Institui\u00e7\u00e3o, sofreu fortes cr\u00edticas da comunidade internacional, levando aquela mesma comiss\u00e3o a interromp\u00ea-lo. Entretanto, a press\u00e3o exercida pelas listas particularmente extensas de receptores infantis fez com que a nova t\u00e9cnica fosse retomada progressivamente, sendo que at\u00e9 dezembro de 2002 j\u00e1 tinham sido operadas mais de tr\u00eas mil crian\u00e7as. Mais do que isso, em 1995, autores japoneses iniciaram seu uso tamb\u00e9m em adultos empregando como enxerto o lobo direito, cuja ressec\u00e7\u00e3o implica em risco de mortalidade cerca de dez vezes maior, entre 1 e 2%. Tamb\u00e9m aqui prevaleceu a press\u00e3o da demanda, estimando-se que at\u00e9 agora tenham sido realizados cerca de mil e quinhentos transplantes intervivos em adultos.<\/p>\n\n\n\n

Esse comportamento pendular decorreu da dificuldade de compatibilizar o princ\u00edpio primum non nocere com o respeito ao livre arb\u00edtrio do doador, que decide correr riscos para salvar a vida de outro ser humano. Para facilitar nosso posicionamento frente a essa quest\u00e3o, \u00e9 oportuno discutir alguns aspectos filos\u00f3ficos b\u00e1sicos, definindo o espa\u00e7o no qual as equipes transplantadoras podem decidir.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9tica \u00e9 a ci\u00eancia da moral, que por sua vez \u00e9 o cap\u00edtulo da filosofia que trata dos costumes e dos deveres. Define e codifica as normas das atividades humanas. Existem pelo menos dois conceitos de \u00e9tica: a \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o, que trata dos deveres, e a \u00e9tica da responsabilidade, que trata dos fins humanos.<\/p>\n\n\n\n

A \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o se pauta por valores e normas previamente estabelecidas, sem dilemas ou questionamentos. \u00c9 a \u00e9tica do dever absoluto. N\u00e3o considera seus efeitos. \u00c9 convencional, disciplinada, formal e incondicional. Historicamente se exemplifica pelo comportamento adotado por S\u00f3crates ap\u00f3s sua condena\u00e7\u00e3o \u00e1 morte pela assembl\u00e9ia popular ateniense. Apesar de n\u00e3o aceitar a culpa que lhe atribu\u00edam de introduzir novas divindades e assim corromper a juventude, rejeitou as alternativas que lhe ofereceram de ex\u00edlio ou de pagamento de multa, como era costume na sociedade a que pertencia. Instado por amigos a fugir, manteve-se irredut\u00edvel para n\u00e3o desrespeitar a lei. Suicidou-se ingerindo cicuta, caracterizando a finalidade porque o fazia: fidelidade a si mesmo, aos compromissos assumidos e \u00e0 sociedade. A \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o \u00e9 a \u00e9tica da f\u00e9.<\/p>\n\n\n\n

A \u00e9tica da responsabilidade se baseia no princ\u00edpio de que somos respons\u00e1veis por aquilo que fazemos. Preconiza que, ao agir, o homem deve avaliar os efeitos de suas a\u00e7\u00f5es enfocando os resultados que determinar\u00e1 em si mesmo e na coletividade. N\u00e3o \u00e9 dogm\u00e1tica. Com ela \u00e9 poss\u00edvel adotar um maior leque de escolhas. Permite incluir na sua formula\u00e7\u00e3o um car\u00e1ter subjetivo e din\u00e2mico no tempo. Permite an\u00e1lises de risco, mapeia circunst\u00e2ncias, estimula reflex\u00e3o sobre fatos, medindo as conseq\u00fc\u00eancias das decis\u00f5es adotadas. \u00c9 uma \u00e9tica de d\u00favidas. Estimula o discernimento individual e coletivo. A \u00e9tica da responsabilidade \u00e9 a \u00e9tica da raz\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

A diferen\u00e7a entre as duas escolas pode ser exemplificada pelo dilema relatado no romance \u201cA escolha de Sophia\u201d de William Styron. Ao ter que escolher entre seus dois filhos qual seria morto na c\u00e2mara de g\u00e1s em Auschwitz, entregou Eva de oito anos e poupou Jan, seu filho ca\u00e7ula. Adotou a \u00e9tica da responsabilidade que lhe permitiu salvar duas vidas, a sua e a de seu filho menor. Do ponto de vista da \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o sua op\u00e7\u00e3o foi imoral, j\u00e1 que vidas humanas n\u00e3o s\u00e3o negoci\u00e1veis. Em algumas circunst\u00e2ncias os dois conceitos podem levar a decis\u00f5es nitidamente opostas. Entretanto, devemos ter sempre presente que a \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o, pela sua hegemonia discursiva e pelas morais que preside, pode engessar iniciativas baseadas em fatos novos, pr\u00f3prios do progresso, impedindo que toda a sociedade dele se beneficie. A dificuldade est\u00e1 na defini\u00e7\u00e3o do limite at\u00e9 onde podemos usar a \u00e9tica da responsabilidade para efetivamente beneficiar a sociedade.<\/p>\n\n\n\n

A outra vertente que exige compatibiliza\u00e7\u00e3o diz respeito ao princ\u00edpio filos\u00f3fico do livre arb\u00edtrio e da autonomia, que \u00e9 o direito de exerc\u00ea-lo. O princ\u00edpio da liberdade decorre de nossa condi\u00e7\u00e3o de seres humanos pensantes, que nos confere o direito de decidir nosso destino, independentemente de h\u00e1bitos, costumes ou leis morais.<\/p>\n\n\n\n

Entretanto, na doa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os, o exerc\u00edcio da autonomia do doador depende da decis\u00e3o da equipe que o assiste nesse ato. Sem a participa\u00e7\u00e3o do cl\u00ednico que o avalia e do cirurgi\u00e3o que o opera n\u00e3o existe doa\u00e7\u00e3o. Define-se assim um julgamento baseado num bin\u00f4mio que inclui a vontade do doador e o discernimento da equipe respons\u00e1vel pelo transplante. O exerc\u00edcio desse discernimento ganha particular import\u00e2ncia, considerando que a cirurgia de doadores vivos \u00e9 o \u00fanico setor da cirurgia na qual uma opera\u00e7\u00e3o de grande porte \u00e9 realizada em indiv\u00edduos sadios. N\u00e3o devem surpreender, portanto, as d\u00favidas sobre a legitimidade \u00e9tica de realizar, sem indica\u00e7\u00e3o m\u00e9dica, cirurgias que carregam um potencial de mortalidade e morbidade, ainda que pequenos. Mesmo assim, devemos ter presente que at\u00e9 2002 j\u00e1 tinham sido publicadas sete mortes de doadores volunt\u00e1rios de f\u00edgado, e que se os mais de cinco mil candidatos a transplante de f\u00edgado no Brasil, fossem todos submetidos a transplantes intervivos, poder\u00edamos prever que, estatisticamente, cerca de cinq\u00fcenta doadores morreriam em decorr\u00eancia da cirurgia para retirada do enxerto.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 evidente que seria muito mais c\u00f4modo orientar nossa conduta em base de princ\u00edpios da \u00e9tica da convic\u00e7\u00e3o, do que faz\u00ea-lo, baseados na \u00e9tica da responsabilidade. Todavia, optando pela primeira alternativa negar\u00edamos a muitos receptores a possibilidade de um transplante, ou seja, sua sobreviv\u00eancia. Receptores esses, saliente-se, para quem o juramento de Hip\u00f3crates nos obriga a tudo fazer para sua cura.<\/p>\n\n\n\n

Mas n\u00e3o podemos nos esquivar dessa responsabilidade. Nosso posicionamento \u00e9 obrigat\u00f3rio, seja em decorr\u00eancia do bin\u00f4mio j\u00e1 referido, seja pela nossa participa\u00e7\u00e3o no balizamento do comportamento da sociedade, cujo maior prop\u00f3sito do ponto de vista filos\u00f3fico \u00e9 promover o bem estar de seus membros em base de crit\u00e9rios por ela mesma estabelecidos. Nossa atua\u00e7\u00e3o se refor\u00e7a pela teoria de Imanuel Kant, que em seu livro publicado em 1797 sobre Metaf\u00edsica da \u00c9tica, defende que a raz\u00e3o \u00e9 a autoridade \u00faltima da moral, ou seja, nosso discernimento deve prevalecer sobre princ\u00edpios e normas que possam impedir o progresso que efetivamente beneficie a sociedade. Este \u00e9 o sentido da \u00e9tica da responsabilidade.<\/p>\n\n\n\n

Por outro lado, mesmo aceitando que o respeito ao livre arb\u00edtrio deve ser o centro de todas as normas do comportamento humano, e que para S\u00f3crates e Plat\u00e3o a\u00e7\u00e3o livre \u00e9 a que coincide com o bem, reconhece-se consensualmente que o direito da sociedade deve prevalecer sobre o direito de cada um de seus membros. A conjun\u00e7\u00e3o desses princ\u00edpios opostos \u00e9 facilitada pela obedi\u00eancia \u00e0s leis, que nos pa\u00edses democr\u00e1ticos s\u00e3o promulgadas pela sociedade por meio dos seus representantes nas c\u00e2maras legislativas.<\/p>\n\n\n\n

Um resumo do cerceamento do livre arb\u00edtrio exercido pela sociedade nos \u00e9 dado de forma muito clara por John Dossetor, Professor de Bio\u00e9tica da Universidade de Alberta no Canad\u00e1. Em s\u00edntese, salienta o conceito de que a liberdade de um ser humano cessa no momento em que interfere na liberdade de outro. Refere que, apesar de respeitarmos o livre arb\u00edtrio para algumas atividades e h\u00e1bitos perigosos para quem os pratica, como esportes radicais, tabagismo e ingest\u00e3o de \u00e1lcool em excesso, quando s\u00f3 prejudicam quem os adota, o restringimos legalmente quando pode prejudicar a terceiros. Cita o c\u00f3digo de tr\u00e2nsito, a legisla\u00e7\u00e3o sobre porte de armas, as proibi\u00e7\u00f5es da eutan\u00e1sia, do tr\u00e1fico de drogas e do aproveitamento da prostitui\u00e7\u00e3o. Finalmente, refere cerceamentos legais que visam o bem comum, como pagamento de impostos, servi\u00e7o militar obrigat\u00f3rio e garantia dos direitos humanos. Resumindo, a pr\u00f3pria sociedade se outorga o direito de limitar o exerc\u00edcio do livre arb\u00edtrio para garantir o bem de todos. Este \u00e9 o cen\u00e1rio no qual as equipes transplantadoras devem se posicionar, para compatibilizar os princ\u00edpios da \u00e9tica com o livre arb\u00edtrio de cada um dos seres humanos sob sua responsabilidade. Para isso, devemos considerar os efeitos de decis\u00f5es individuais de potenciais doadores na sociedade em geral, e portanto, nos programas atuais de doa\u00e7\u00e3o. Por outro lado, nosso comportamento deve considerar tamb\u00e9m as mudan\u00e7as de posicionamento da sociedade ocorridas em v\u00e1rios pa\u00edses frente a proibi\u00e7\u00f5es hist\u00f3ricas, como por exemplo, o casamento entre homossexuais, seu direito em adotar filhos com posi\u00e7\u00e3o jur\u00eddica id\u00eantica ao dos filhos de casamentos heterossexuais, os direitos da companheira n\u00e3o casada civilmente, e em alguns pa\u00edses, a legaliza\u00e7\u00e3o da eutan\u00e1sia e a interrup\u00e7\u00e3o da gravidez. Essas mudan\u00e7as mostram que esse contexto, no qual a comunidade transplantadora e a sociedade em geral devem atuar, inclui aspectos extremamente subjetivos, vari\u00e1veis com o tempo e com os pa\u00edses aonde se exercem, o que exige ainda mais do nosso discernimento.<\/p>\n\n\n\n

Para uma melhor compreens\u00e3o de como interagem todas essas vari\u00e1veis, no caso dos transplantes, analisemos como tem evolu\u00eddo recentemente a posi\u00e7\u00e3o da comunidade transplantadora em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 doa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os em vida. Representam condutas baseadas no princ\u00edpio da responsabilidade.<\/p>\n\n\n\n

1\u00ba. Doador relacionado:<\/strong>
Em junho de 2000, uma centena de representantes da comunidade transplantadora norte-americana definiu, em consenso, que a obten\u00e7\u00e3o de enxertos de doadores vivos \u00e9 eticamente v\u00e1lida, desde que obedecendo determinadas particularidades t\u00e9cnicas. Definiram tamb\u00e9m textualmente que, \u201ca retribui\u00e7\u00e3o financeira direta a um doador vivo \u00e9 ilegal, ainda que esta quest\u00e3o persista controvertida nos Estados Unidos\u201d. Especificamente a Transplantation Society definiu que \u201c\u00f3rg\u00e3os e tecidos devem ser doados sem proveito comercial\u201d.<\/p>\n\n\n\n

2\u00ba. Doador n\u00e3o relacionado, tamb\u00e9m chamado de bom-samaritano:<\/strong>
O mesmo consenso definiu que esse tipo de doa\u00e7\u00e3o merece um estudo caso a caso, e que os enxertos assim obtidos devem ser destinados, em cada centro, conforme o crit\u00e9rio adotado, para a lista de espera. Se direcionado a um receptor espec\u00edfico deve obedecer a um ritual jur\u00eddico que garanta a aus\u00eancia de retribui\u00e7\u00e3o material.<\/p>\n\n\n\n

3\u00ba. Doador vivo, induzido por contribui\u00e7\u00e3o caridosa:<\/strong>
Apesar do consenso de junho de 2000 ter proibido qualquer tipo de retribui\u00e7\u00e3o material a fim de respeitar o car\u00e1ter altru\u00edstico da doa\u00e7\u00e3o, car\u00e1ter esse que foi considerado como obrigat\u00f3rio, o mesmo Comit\u00ea de \u00c9tica da Sociedade Americana de Cirurgi\u00f5es Transplantadores, alterou sua posi\u00e7\u00e3o dois anos depois. Considerou, tamb\u00e9m por consenso, ser \u00e9tico o pagamento dos custos funer\u00e1rios \u00e0 fam\u00edlia do doador cad\u00e1ver ou o pagamento de uma contribui\u00e7\u00e3o caridosa como demonstra\u00e7\u00e3o de gratid\u00e3o da sociedade pela autoriza\u00e7\u00e3o concedida. Essa posi\u00e7\u00e3o foi considerada por muitos como sendo uma concess\u00e3o cosm\u00e9tica, para camuflar uma comercializa\u00e7\u00e3o velada, que poderia se transformar numa rampa suave em dire\u00e7\u00e3o \u00e0 comercializa\u00e7\u00e3o pura e simples.<\/p>\n\n\n\n

4\u00ba. Doa\u00e7\u00e3o remunerada \u2013 comercializa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os:<\/strong>
Recompensa financeira direta a doadores vivos \u00e9 pr\u00e1tica ilegal em muitos pa\u00edses, como o Brasil, os EUA e a \u00cdndia, entre outros, mas tem causado, progressivamente, maior discuss\u00e3o. Os que a defendem alegam que todas as etapas do processo da doa\u00e7\u00e3o s\u00e3o remuneradas, desde a do coordenador de capta\u00e7\u00e3o at\u00e9 a equipe da UTI que assiste o doador ap\u00f3s a cirurgia da retirada do enxerto. Sendo assim, porque n\u00e3o retribuir tamb\u00e9m o doador? Os que s\u00e3o contra alegam que todas essas remunera\u00e7\u00f5es dizem respeito a servi\u00e7os profissionais, enquanto que o pagamento do \u00f3rg\u00e3o em si constitui com\u00e9rcio inaceit\u00e1vel de partes do corpo humano, que compromete os valores \u00e9ticos e morais b\u00e1sicos da sociedade. Segundo estes, os m\u00e9dicos envolvidos na comercializa\u00e7\u00e3o comprometeriam seu compromisso deontol\u00f3gico que garante a todos os seres humanos um valor acima de qualquer pre\u00e7o. Al\u00e9m disso, acreditam que a comercializa\u00e7\u00e3o levaria inevitavelmente \u00e0 viola\u00e7\u00e3o dos direitos humanos b\u00e1sicos, tanto dos doadores quanto dos receptores. O Papa, a Confer\u00eancia dos Bispos Cat\u00f3licos, a Igreja Grega Ortodoxa, e a Igreja Anglicana, entre outras entidades religiosas, definiram-se contra a comercializa\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Entretanto, apesar da solidez dessas posi\u00e7\u00f5es, persiste a controv\u00e9rsia identificada no consenso de junho de 2000. Neste sentido, merece particular aten\u00e7\u00e3o a abordagem atual do tema pelo estado de Israel. Apesar da comercializa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os ser ilegal nesse pa\u00eds, referem-se pelo menos 61 casos recentes de transplantes de rim com enxertos comercializados. Michael Friedlaender refere numa edi\u00e7\u00e3o de Lancet do ano passado, que ainda que ilegal, a venda de \u00f3rg\u00e3os \u00e9 pr\u00e1tica rotineira em Israel e em outros pa\u00edses, citando quatro pacientes de Israel que pagaram, nos EUA, 200 mil d\u00f3lares por um rim. A fim de reduzir este valor passaram a comprar \u00f3rg\u00e3os em outros pa\u00edses. Inicialmente os adquiriam no Iraque e na Ar\u00e1bia Saudita, mas com o advento de dificuldades pol\u00edtico-militares, passaram a faz\u00ea-lo na Bulg\u00e1ria, Rom\u00eania, Est\u00f4nia e Turquia. Mais surpreendente \u00e9 a posi\u00e7\u00e3o das autoridades religiosas judaicas apoiadas por grupos ortodoxos, conservadores e reformistas recomendando programas pragm\u00e1ticos que permitam a comercializa\u00e7\u00e3o, desde que garantindo informa\u00e7\u00e3o adequada aos potenciais vendedores e aus\u00eancia de explora\u00e7\u00e3o financeira por terceiros. Mas a comercializa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os, mesmo obedecendo a uma normatiza\u00e7\u00e3o desse tipo, ou a qualquer outra, implica num risco incalcul\u00e1vel de explora\u00e7\u00e3o de doadores no terceiro mundo, e numa injusti\u00e7a para receptores incapazes de pagar esse tipo de transplante.<\/p>\n\n\n\n

Cabe a n\u00f3s, transplantadores, exercendo o papel de defensores dos valores morais da pr\u00e1tica m\u00e9dica, agir de forma clara e eficaz com vistas \u00e0 injusti\u00e7a social que inevitavelmente acompanharia a comercializa\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os. A adequada aplica\u00e7\u00e3o de princ\u00edpios \u00e9ticos pode contribuir para evitar algumas dessas injusti\u00e7as. Entre n\u00f3s, a lista \u00fanica de receptores constitui bom exemplo do emprego da \u00e9tica da responsabilidade com esta finalidade.<\/p>\n\n\n\n

Finalizando esta revis\u00e3o filos\u00f3fica vale citar Ren\u00e9 Descartes que baseou toda sua obra na premissa cogitum ergo sum - penso logo existo. Parece que nos \u00e9 oportuno atribuir ao termo cogitum o sentido de questionar, discutir e valorizar os contradit\u00f3rios, pari passu que os valores m\u00e9dicos e sociais relacionados a esta quest\u00e3o se modifiquem. Somente dessa forma poderemos bem aplicar os princ\u00edpios filos\u00f3ficos da \u00e9tica para balizar adequadamente a progresso do transplante de \u00f3rg\u00e3os, justamente considerado por muitos como o triunfo da cirurgia contempor\u00e2nea.<\/p>","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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